terça-feira, 16 de junho de 2020

Maracanã, 70 Estádio nasceu com obras inacabadas e torcedores pendurados em andaimes às vésperas da Copa do Mundo DIEGO SALGADO


Terça feira, 16 de junho de 2020.
O paredão de madeira disputava lugar na arquibancada do novíssimo Estádio Municipal do Rio de Janeiro, o palco principal da Copa do Mundo no Brasil. Ocupava pelo menos 32 degraus — de um total de 48 — e estava localizado atrás de um dos gols, o que correspondia a 25% do maior setor do local. Por isso, o Maracanã planejado e construído para 155 mil pessoas, 93,5 mil só na arquibancada, recebera "apenas" 100 mil espectadores para o jogo de inauguração, disputado pelas seleções do Rio de Janeiro e São Paulo.
No dia 17 de junho de 1950, a apenas sete dias da abertura do Mundial, os andaimes que impediam a lotação máxima do estádio municipal tinham, no entanto, uma função vital: eles serviam de base para a marquise e suportavam parte das suas 96 toneladas. Um dos torcedores que se misturava ao ferro e aos pedaços de madeira na arquibancada era o jovem Alfredo, de 14 anos. Como espectador, relembra a situação dos brasileiros que foram ver o jogo. Como urbanista e arquiteto, Alfredo Britto explica o porquê da necessidade de inaugurar o estádio com as obras ainda em andamento.
Muita gente ficou agarrada às travessas dos andaimes. Assistiam à partida com uma grade na frente. A concretagem ainda não estava concluída. Era preciso que tivesse o suporte."
Foi dessa forma que o coronel Herculano Gomes, engenheiro responsável por tocar a construção do estádio, resolveu o problema da falta de tempo. Antes, nos últimos meses da obra, na iminência do atraso na entrega da praça esportiva, o coronel não hesitou em subir no topo de um trecho da marquise acima das tribunas.
Lá de cima, a 32 metros de altura, viu um tanque do Exército puxar o escoramento do setor com um cabo de aço. O episódio resumia bem o que ocorrera nos últimos 22 meses naquele terreno às margens do rio Maracanã.
 Divulgação/Suderj
Burocracia apertou o prazo
A oficialização do Brasil como sede da Copa, em 25 de julho de 1946, foi a deixa para a construção de uma grande praça esportiva na então capital do país, um antigo anseio. No dia 4 de setembro de 1946, exatamente 41 dias após a escolha da Fifa, foi instalada uma comissão ainda na gestão do prefeito Hildebrando Góes (1946-1947) para estudar o plano de construção de estádios.

A posse de Mendes de Moraes, em junho de 1947, ajudou a acelerar o processo. Faltava, contudo, o projeto e o local para a construção do estádio, fosse ele municipal ou federal. A localização do terreno do Derby Club, da prefeitura, fora determinante para tornar a municipalidade responsável pela construção.

Dessa forma, a Secretaria de Finanças do Distrito Federal e o presidente do Conselho Nacional de Desportos, João Lyra Filho, apresentaram uma proposta de financiamento, com garantias vindas da venda antecipada de 30 mil cadeiras cativas. Ela começaria em janeiro de 1948. O Banco da Prefeitura, então, concedeu o crédito ao poder municipal.

A burocracia resultou numa obra ainda inacabada no mês da Copa. A previsão dos custos também foi descumprida. Segundo relatório da Adem (Administração dos Estádios Municipais), divulgado nos primeiros dias de 1949, o Estádio Municipal estava "oficialmente estimado" em 150 milhões de cruzeiros. Vinte e dois meses de obra, no entanto, trataram de descumprir a previsão. O custo aumentou quase 54%, em 230 milhões de cruzeiros.

O projeto foi dividido em dois escritórios, que haviam ficado nas primeira posições me um concurso realizado em 1941. Antônio Dias Carneiro e Pedro Paulo Bastos, a dupla vencedora, e Rafael Galvão e Orlando de Azevedo Neto, os perdedores, tiveram a incumbência de projetar o maior estádio do mundo.
Getty Images

Zagallo jogou no terreno
As corridas de cavalo já não ocorriam no terreno cravado na Tijuca desde o início da década de 1930, quando o Jockey Club e o Derby Club se juntaram para formar o Jóquei Clube Brasileiro. "Lá dentro, além da parte circular da pista de carreira, havia uma porção de obstáculos para trabalhos de cavalos em concursos hípicos. Tinha também enormes arquibancadas, de ferro e de madeira", lembra o general Jonas Correia Neto, que ainda criança viu a mudança do cenário.

A mudança do Derby Club foi festejada, mesmo, primeiramente pela meninada da Tijuca, que passou a usar o local como palco de brincadeiras. Um deles era o próprio general Jonas. Era só atravessar a rua, e lá estava o terreno abandonado.

O garoto Mário Jorge, que também morava nas imediações, tinha apenas 16 anos quando, em junho 1947, o terreno foi apontado como o local mais adequado para a construção do Estádio Municipal. "Quando já estava determinado que ali seria o estádio, joguei uma pelada no Derby Club", conta.

Aqui, estamos falando de Mário Jorge Lobo Zagallo. Uma figura que, obviamente, não se limitaria a um breve bate-bola no terreno do maior estádio do mundo. Zagallo transformaria o quintal de sua casa em palco principal de sua própria vida. Primeiro como militar, depois como ponta-esquerda do Botafogo e da seleção.

Eu passava pela obra e achava a estrutura muito grande. Pensava onde arrumariam torcida para encher aquilo

Zagallo, Então garoto e vizinho do Maracanã.

O mesmo ocorreu com o menino Calé. Nascido em Madureira, mudou para a Tijuca e viveu parte da infância ali. Ele também vira, nos primeiros anos de vida, a instalação do quartel do Exército no hiato entre o Derby Club e o Maracanã. Nunca entrou no terreno antes de o estádio ser erguido. Ironia pura, pois, a partir de 1958, quando o maior estádio do mundo já tinha completado oito anos, Calé virou funcionário do Maracanã. Nunca mais saiu de lá e se tornou o trabalhador mais antigo do estádio.

Mesmo morando tão perto, os três tinham apenas o Macaranã como fator comum. O general Jonas vivia na rua Derby Clube. Zagallo, na professor Gabizo, e Calé, na rua Ibituruna. Presenciavam as corriqueiras enchentes que ocorriam no bairro após o rio Maracanã transbordar.

As inundações se tornariam um dos argumentos da prefeitura para bater o martelo e escolher o antigo terreno como o local do estádio. Com a construção, obras no entorno do Maracanã poderiam extinguir o problema de uma vez por todas. O tempo se encarregaria de desmentir a promessa.
Acervo UH/Folhapress

Uma obra em 675 dias

Até 31 de dezembro de 1948, quando a construção do estádio caminhava para o sexto mês, a Adem já havia gastado 10,4 milhões de cruzeiros só com material. O entra e sai de caminhões impressionava os moradores acostumados com o sossego do terreno abandonado de meses antes.

A obra, porém, não começou com muitos funcionários —eram 200 no início—, principalmente se comparada com os últimos meses. Um ano após o começo da construção, 1.481 operários ajudavam a erguer as arquibancadas. O número de trabalhadores foi divulgado pela Adem a fim de acabar com rumores de que teriam ocorrido deserções e dispensas.

À época, a Prefeitura tinha a previsão de erguer o Maracanã até abril de 1950. Dessa forma, em janeiro de 1950, 2,8 mil operários trabalhavam na obra. "Era impressionante. Parecia mesmo que seria uma coisa muito gigantesca. Era um verdadeiro exército de gente trabalhando ali", disse Calé.
Divulgação/Suderj

Marquise virou preocupação
O estádio apresentava um cronograma apertado. As arquibancadas já estavam concluídas, mas a marquise começava a se tornar uma preocupação. Somente nos primeiros dias de fevereiro a cobertura começou a tomar forma. Para agilizar a entrega de materiais, o prefeito Mendes de Moraes conseguiu tomar emprestado caminhões de carga do Exército que se juntariam à frota da Prefeitura.

Foi nesse cenário que Herculano Gomes teve a ideia de adicionar uma resina especial na marquise. O objetivo era realizar a secagem do concreto em um tempo menor. O próximo passo do coronel seria o ponto mais alto da cobertura, onde vira parte do madeiramento ser derrubado. Não havia escolha. A pressão sobre o coronel aumentava à medida que a data de abertura do Mundial chegava. Meses antes, em meados de setembro, a obra recebeu a visita do presidente da Fifa, Jules Rimet.

O dirigente, apreensivo, pôde acompanhar o ritmo acelerado da construção. Quando retornou ao país, já de forma definitiva para acompanhar a competição, em 2 de junho de 1950, a apenas 22 dias do jogo inicial da Copa, o presidente da Fifa ainda não encontrou o Maracanã pronto para receber uma partida de futebol.

Tanto que a inauguração do estádio, com o confronto entre as seleções de novos do Rio de Janeiro e de São Paulo, foi adiada do dia 28 de maio para 17 de junho —o legendário botafoguense Didi, por sinal, fez o primeiro gol "para valer" do Maracanã. Na noite anterior ao jogo, pouco depois de o presidente Dutra cortar a fita simbólica do estádio, na inauguração oficial em 16 de junho, operários e engenheiros bateram uma bola sobre o gramado de 110 metros de comprimento por 75 de largura. Os homens responsáveis pela maior obra de estádio até então jogavam para apenas um espectador: o paredão de madeira.
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Palco de seis jogos da Copa
Na ânsia de finalizar a obra, o Exército foi chamado para auxiliar mais uma vez. Era preciso remover algumas tábuas de madeira que já não eram necessárias para a sustentação da marquise. Entre os soldados, Zagallo, com 19 anos incompletos.

O jovem ponta-esquerda também prestaria outro serviço ao Brasil durante a Copa. Em três jogos do Mundial, com uniforme verde-oliva, capacete e cassetete, zelou pela segurança dos torcedores que foram às arquibancadas do Estádio Municipal.

Além da abertura e do jogo final, o Maracanã recebeu mais seis jogos da Copa. Três deles foram disputadas por equipes que não faziam parte do grupo da seleção brasileira. Um dia após o Brasil vencer o México no jogo inaugural da Copa, dia 24 de junho, com pouco mais de 81 mil torcedores no estádio, Inglaterra e Chile entraram em campo sob olhares de apenas 29,7 mil pessoas. Ainda menor foi o público que acompanhou o confronto entre espanhóis e chilenos: somente 19,7 mil espectadores.

Na última rodada da primeira fase, 74,6 mil novos aficionados por futebol viram a Espanha despachar a Inglaterra e passar ao quadrangular final. Depois da estreia, o Brasil voltou ao estádio contra a Iugoslávia. Sem o paredão de madeira, 142.429 torcedores acompanharam a vitória brasileira.

Na fase final, casa cheia também para os dois jogos que antecederam a derrota fatídica para os uruguaios. Contra a Suécia, 138 mil torcedores. Diante da Espanha, 152 mil. Na derrota da seleção brasileira para o Uruguai, em 16 de julho de 1950, 173 mil espectadores, oficialmente, superlotaram o maior estádio do mundo. Havia, segundo relatos, 200 mil pessoas no Maracanã naquele dia. Número impressionante para justificar uma das maiores derrotas da história das Copas, o Maracanazo.
Delmiro Júnior /Agência O Dia / Estadão Condeúdo.
Novos Maracanãs

Em seus 70 anos de história a partir do gol de Didi, dos andaimes e do Maracanazo, o estádio passou por incontáveis reformas, de pequeno e enorme porte. Ao mesmo tempo em que acolheu títulos e emoções de flamenguistas, vascaínos, botafoguenses, tricolores e, por que não, santistas, corintianos e tantas torcidas que vinham de longe para encher suas dependências. Hoje, sem jogos, cede seu para abrigar um hospital de campanha

A reforma mais drástica visou o Mundial de 2014, quando a cobertura original foi demolida. Dentro, as cadeiras deram um novo colorido ao estádio, azuis, amarelas e brancas, enquanto os anéis para acomodar o público davam lugar a uma só estrutura. Foi uma obra polêmica, que mexeu com centenas de milhões de reais e muitas emoções. Abaixo, no programa "Os Canalhas", o jornalista João Carlos Albuquerque e o ex-jogador Edinho, do Fluminense, debatem essa transformação:
Júlio César Guimarães/UOL
Publicado em 16 de junho de 2020
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Reportagem: Diego Salgado. Edição: Diego Salgado e Giancarlo Giampietro

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